Max Weber, em um texto denominado “A ciência como vocação”, definiu o desencantamento do mundo como a possibilidade de o homem dominar todas as coisas através do cálculo. Nesse mundo desencantado, os sentidos da existência, do tempo e do conhecimento tomaram outros rumos. A noção de progresso, que contempla um tempo linear e sempre melhor, perdeu a sua força.
O que seria o mundo encantado? Mircea Eliade nos fala de civilizações em que o mito era plenamente vivido. O mundo se comunicava com o homem, e o homem o reconstruía, e reconstruía a si mesmo, através da linguagem dos símbolos. Tudo tinha sentido nesse cosmo vivo: o mundo se revelava por meio da linguagem, longe do desencantamento que veio se processando na cultura ocidental.
Nietzsche, em O nascimento da tragédia, ao estabelecer a relação entre ciência e mito, nos fala do aniquilamento deste último, fato que determina a expulsão dos poetas da República. Poetas, entenda-se: sonhadores, criadores de utopias, santos e outros da mesma estirpe — toda uma tribo errante, perambulando pelo mundo e carregando o facho do reencantamento. Reencantamento que não é uma volta a um passado mítico, embora se possa pensar em um mito restaurado que reaproprie o presente naquilo que o presente ofereça como possibilidade de encanto.
Talvez devêssemos fixar o que perdemos para, depois, estabelecer o que podemos reconquistar. Em termos de linguagem, perdemos a inocência.
O que queremos dizer com isso? Que ficou vazio de sentido o que enunciamos, razão pela qual é necessário reencontrar a verdade da palavra: a união da palavra com a coisa enunciada. Algo que as crianças conservam, até perceberem que a palavra é distinta da coisa.
Antes da invenção da escrita a palavra oral instaurava os fatos presentes, preservava o passado e prognosticava o futuro. Nomear significava fazer existir. O ser habitava a linguagem. E os senhores da palavra dominavam os acontecimentos. Daí a plenitude da poesia e o poder da palavra.
Um dos textos mais antigos de que temos conhecimento, o “Poema babilônico da criação”, nos fala de “quando no alto o céu ainda não havia sido nomeado e embaixo a terra firme não havia sido mencionada por seu nome (…)quando os deuses não haviam sido criados, nem nenhum nome havia sido pronunciado, nem nenhum destino havia sido fixado(…).” Nenhum nome pronunciado: céu, terra, homem, deuses, destino. Nomear para dar existência. Cinco mil anos antes de Cristo, os babilônios fixaram essa verdade. Desde então trilhamos um longo caminho em que a linguagem foi perdendo a sua força. E como diz Elie Wiessel: “quando a linguagem fracassa, é a violência que a substitui.
A violência é a linguagem daquele que não se exprime mais pela palavra. A violência é também a linguagem da intolerância, que gera o ódio”. Por isso é necessário restaurar a potência criadora da linguagem. Para Calvino, o “justo emprego
da linguagem permite o aproximar-se das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras”.
Através da criação, da arte, talvez se propicie novamente esse encontro do homem com a linguagem. Nesse sentido, é importante reafirmar que arte e criação não se encontram apenas nesta figura recentemente criada, o artista, mas no homem em sua plenitude. Para isso, é necessário virar o mundo de cabeça para
baixo. Inverter a proposição de que ser é ter. Buscar o lúdico no cotidiano. Olhar o mundo com espanto. O espanto de estar vivo, tão misterioso quanto o não-ser. Mas vamos aterrissar em nosso chantier, buscando dialogar com os companheiros da tribo.
Em um documento enviado como contribuição aos debates do Encontro Mundial dos Artistas da Aliança, Gustavo Marin questiona: “En las crisis de las diversas civilizaciones a las que asistimos a fines
del siglo XX, pueden el arte y los artistas ser un medio para que los
pueblos vivan en paz en un mundo de diversidad?”
Nessa mesma linha, Michel Sauquet observa que “todo o mundo está de acordo acerca do papel da arte para reencantar o mundo”, a questão é “ver como o reencantamento intervém concretamente para o desenvolvimento social, para a redução das injustiças e desigualdades e na luta contra a exclusão”.
Olivier Petitjean, no seu texto “L’art, l’artiste et l’identité culturelle dans la construction d’un Montreuil solidaire”, nos fala da cidade onde mora, Montreuil, contando — a partir de uma experiência concreta — como as práticas artísticas podem modificar a percepção dos problemas sociais e ser um fator de inovação.
Marin, Sauquet e Petitjean colocam, cada um a seu modo, questionamentos acerca da reinvenção do mundo através da arte.
Talvez tenha chegado o momento, como afirma Cristovam Buarque, dos artistas e dos pensadores, “depois de décadas de predomínio dos economistas. Estamos entrando em um tempo de poetas, dramaturgos e escritores, que, pela intuição, denunciem e formulem; de pensadores que, pela análise, critiquem e proponham uma visão ampla do drama humano e nacional”.
Estará se cumprindo essa profecia? Vimos alguns prenúncios em notícias aleatórias, de origem variada, que surgiram no espaço de poucos dias, enquanto redigíamos este documento. Em 17 de agosto de 2001, o jornal carioca O Globo ostentou a manchete: “Poesia no tratamento de usuários de drogas”. Referia-se ao projeto de uma instituição que pretende revolucionar o tratamento de jovens dependentes de drogas: o Centro de Atenção à Drogadição Raul Seixas. A idéia — afirma o então coordenador de Saúde Mental do município do Rio de Janeiro, Hugo Fagundes — é que o Centro Raul Seixas seja um clube de jovens, com atividades que permitam a eles perceber que
é possível atravessar a juventude com horizontes diferentes da satisfação imediatista, da atração pela droga, do bombardeio consumista e do sonho impossível, como o tênis Nike. Em suma, uma tentativa de substituir a evasão buscada na droga pelo imaginário da poesia… Um belo projeto.
Lemos no Jornal do Brasil, de 17 de agosto de 2001 uma reportagem com o título: “A cultura desafia a realidade. Projetos em comunidades carentes se multiplicam no Rio transformando a arte em alternativa para o cotidiano e matéria-prima para o futuro”.
Nessa matéria, uma jovem de 21 anos, Cláudia Martins, que participa de um grupo de dança, afirma: “Demorei para descobrir que não é porque moro numa favela que tenho que estudar até o segundo grau e ser secretária ou atendente. Hoje sei que posso ser bailarina, fazer uma faculdade e ter a dança como meio de vida. Esse trabalho mudou a minha percepção da realidade”.
“Ciência para poetas” é um curso da Casa da Ciência, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que teve início em setembro de 2001abrindo espaço para que artistas, cientistas e o público interessado pudessem trocar idéias sobre teatro, ciência e divulgação científica.
No folder, o propósito desse evento: “Nas artes e nas ciências o homem cria seu caminho, inventa o infinito e a aventura de sua busca.
O que une arte e ciência é o sentimento de que, quanto mais se anda,
mais falta para andar […]”
Cristovam Buarque afirma que será “preciso voltar aos fundamentos dos valores humanos, subordinando a técnica à ética numa nova lógica, capaz de entender o homem e o resto da natureza como parte de um todo e de redefinir os conceitos de liberdade e de igualdade nestes tempos das grandes e independentes máquinas que substituem o trabalho humano e destroem o meio ambiente. Será preciso, sobretudo, imaginação para inventar um novo conceito de riqueza sem as amarras da economia, usando esta última apenas como um instrumento”. Essa conversão do homem para uma lógica, que não a do capital, precisa se impor.
Mas voltemos à poesia.
Segundo Octavio Paz, não existe uma sociedade sem poesia nem uma poesia sem sociedade. Entenda-se poesia em seu sentido lato, como o povoamento do mundo pela arte.
Para Paz, uma “sociedade sem poesia careceria de linguagem: todos diriam a mesma coisa ou ninguém falaria”, já uma poesia sem sociedade “seria um poema sem autor, sem leitor e, a rigor, sem palavras. Condenados a uma perpétua conjunção que se resolve em instantânea discórdia, os dois termos buscam uma conversão mútua:
poetizar a vida social e socializar a palavra poética. Transformação da sociedade em comunidade criadora, em poema vivo; e do poema em vida social, em imagem encarnada.
Uma sociedade criadora seria uma sociedade universal em que as relações entre os homens, longe de ser uma imposição da necessidade exterior, fossem como um tecido vivo. […] Essa sociedade seria livre porque, dona de si, nada exceto ela mesma poderia determiná-la; e solidária porque a atividade humana não consistiria, como hoje, na
dominação de uns sobre outros (ou na rebelião contra esse domínio), mas buscaria o reconhecimento de cada um por seus iguais ou, melhor, por seus semelhantes”.
Borges expressa muito bem o sentido visceral da poesia ao dizer que ela não acontece apenas intelectualmente, mas atinge o homem em todo o seu ser.
Nietzsche diz algo similar. Segundo ele, só a arte tem o poder de produzir representações da existência que nos possibilitam viver. São essas representações — terreno fértil para a criação artística — que, passando pelos imaginários individual e coletivo, nos possibilitam reinventar o mundo.
É essa dimensão fundadora da arte que necessita ser resgatada, porque — como nos diz Fayga Ostrower — “quando o homem moldou a terra moldou a si mesmo”. Construiu, digamos, a sua própria imagem. Há aí algo de misterioso embutido em uma pergunta de Fayga: “Que tipo de linguagem é esta que não precisa de interpretação e comunica há milênios sem perder o núcleo da expressividade?”
Talvez esse enigma sem resposta possa nos guiar na busca de um outro padrão de existência, reformulando o imaginário que alimenta nossos desejos. O que buscamos depende, além das circunstâncias que nos cercam e dos imponderáveis, de vontade e ação. Ousar fazer. É no fazer, com seus erros e acertos, que poderemos construir uma nova forma de vida mais igualitária, criativa e feliz.
A arte que, através do tempo, tem sido o registro de várias civilizações, documento e testemunho, desempenha um papel fundamental no desenvolvimento humano e cultural. Hoje, mais do que nunca, com a crise civilizatória, e o conseqüente monoteísmo da razão, a linguagem da arte talvez seja das poucas que fala diretamente
ao coração das pessoas, particularmente dos jovens. Além de impulsionar transformações sociais, pode contribuir para reencantar o mundo a partir do estabelecimento de fortes trocas simbólicas e formar, assim, uma comunidade de emoção.
Heráclito afirma que a morada do homem é o extraordinário. Extraordinário que, em grande medida, o homem contemporâneo perdeu com a perda do cosmo, conforme disse em algum lugar D. H. Lawrence. Como nos religar ao cosmo? Ou, como nos interroga Vanda Chalyvopolou: como vamos encontrar outra vez a sensação mágica das coisas?
Já que, segundo Borges, “a beleza está à espreita por toda a parte”, é necessário promover mais encontros com ela. Talvez na dimensão que nos sugere Bené Fonteles quando questiona a produção da arte só para a sensação dos sentidos: “Por que produzir uma arte só para a sensação dos sentidos quando o discernimento da mente e da alma nos pede mais responsabilidade com a matéria, a palavra, o pensamento e a obra? O que a arte nos exige é um exercício sensitivo e intuitivo para uma nova forma de perceber, estar e pertencer ao mundo, aquele que neste milênio se prepara para compreender as outras dimensões que a ciência já experimenta ou visiona”.
Embora o materialismo impregne a vida do homem ocidental, ele nunca se liberou do sagrado que — segundo Mircea Eliade — alimenta o seu inconsciente constituído de figuras carregadas de sacralidade. Em certos casos — afirma ele —, o comportamento do artista ante a matéria reencontra e recupera uma religiosidade de tipo extremamente arcaica, desaparecida há milênios do mundo ocidental. Não será esse o caso que nos relatou Bené Fonteles acerca da
explicação de um artista popular sobre a sua escultura de um elefante? “Eu peguei a madeira, escutei a madeira, ouvi o que queria dizer e tirei tudo o que não era elefante.”
A arte possibilita inúmeras interpretações. Brice Parfait, também participante da rede dos artistas, afirma ser a arte o “último degrau do conhecimento”, e o artista o “mensageiro do invisível”. Para Kolakowski a arte é “um modo de perdoar a maldade e o caos do mundo”. Segundo ele a “arte organiza as percepções do mau e do caótico, introduzindo a
compreensão da vida de maneira tal que a presença do mal e do caos se converte na possibilidade de minha iniciativa
com respeito ao mundo, que leva em si mesmo seu próprio bem e seu próprio mal.
Para que possa ser assim, a arte deve descobrir no mundo o que sua aparência não proporciona, ou seja, o encanto secreto de sua feiúra, a deformação oculta de sua graça, o ridículo de sua elevação, a pobreza do luxo e o custo da pobreza; em uma palavra: deve descobrir todas as fibras secretas sufocadas pelas qualidades empíricas e que as convertem em partículas de nosso fracasso ou de nosso orgulho”. A arte nos permite, como o mito, tocar o mistério do mundo, sua ludicidade, prazer, alegria. Permite-nos penetrar no desconhecido em busca de respostas parciais, sempre parciais, que mantém o élan do viver. E isso ligado, também, a uma busca de soluções para os problemas que nos atropelam e ameaçam a nossa própria sobrevivência. Sobrevivência que, para ser válida, tem que ser digna. Vale dizer, tem que ser compartilhada, em um mundo que valha a pena ser vivido.
Às vezes, nos esquecemos que, além da carência de bens materiais, que causa a miséria e a morte de milhares de pessoas, temos carência de bens simbólicos e espirituais. Na confluência dos bens simbólicos e espirituais, temos a arte, que impulsiona relações entre pessoas e grupos, renovando vivências, laços de solidariedade, criando imaginários e poéticas imprescindíveis para o conhecimento do outro e de si mesmo. Nesse sentido, desenvolver-se com arte pode tornar a nossa vida mais alegre e o nosso olhar mais sensível à realidade cotidiana. Pode contribuir para a criação de um rico imaginário, apoiado nas raízes e na criatividade coletiva do presente; e resgatar poéticas que dão um sentido à vida em comunidade pela alegria, o lúdico, a imaginação.
Assim como a arte, a figura do artista é central nas sociedades contemporâneas: construtor de identidades sociais e imaginários, referência existencial e, muitas vezes, mítica. Enfim, são pessoas especiais nos vários contextos, tanto como agentes da alienação, usando a arte como sistema de manipulação, quanto como agentes em busca de um mundo plural, solidário e responsável.
E já que estamos falando do artista, encerramos este item com a fala de Makarand Paranjape, poeta indiano, integrante da Rede de Artistas: “O artista pode ajudar a construir as condições necessárias para a mudança do mundo. Isto pode ser realizado não se retraindo em uma torre de marfim, mas fazendo a arte mais acessível para as pessoas comuns, liberando-se das amarras das forças do mercado, e também trazendo à tona a criatividade escondida das pessoas”.
Fonte:
Rede Mundial Artistas em Aliança: Cadernos de Proposições para o Século XXI
Aliança por um Mundo Responsável, Plural e Solidário
Cadernos de Proposições para o Século XXI